segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Resenha Crítica - Juliana Chrisóstomo



Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.

resenhado por Juliana Chrisóstomo de Almeida

Nelson Rodrigues nasceu em 23 de Agosto de 1912 em Pernambuco e faleceu aos 68 anos no Rio de Janeiro. Foi um importante jornalista e escritor brasileiro e considerado um dos mais influentes dramaturgos do Brasil. Dentre seus trabalhos no teatro, destaca-se “Mulher sem Pecado” e “Vestida de Noiva”. “Anjo Negro” é uma peça dramática que aborda o racismo e as mazelas da sociedade da época.
 Os personagens são: Ismael, Virgínia, Elias, Ana Maria, tia, primas, criada, coveiro de crianças e o coro das pretas descalças.
A peça é composta substancialmente por três atos. O primeiro quatro desse ato compreende a morte do filho de Ismael e Virgínia e a vista de Elias à casa de Ismael. No segundo quadro, Virgínia conhece seu cunhado Elias. No segundo ato, Virgínia se relaciona sexualmente com Elias que é o assassinado por Ismael. O terceiro e último ato compreende o nascimento de Ana Maria, filha de Virgínia e Elias; a descoberta do relacionamento do padrasto com a menina e o fim trágico em que Ana Maria é assassinada pelo casal, Virgínia e Ismael.
O espetáculo tem início já com um fato trágico, exatamente como no texto de Nelson: a atriz que interpreta a personagem “Senhora” narra o falecimento dos filhos negros de Ismael e de Virgínia, e apresenta as possíveis hipóteses que causaram a morte das crianças. Ao final da narração, é expresso o caráter racista da sociedade da época na seguinte frase: “ - A branca também desejou o preto! - Maldita seja a vida, maldito seja o amor.” Através dessa frase, é possível perceber o cúmulo do pensamento daquelas pessoas. Elas atribuíam ao relacionamento entre uma branca e um preto a causa da morte daquelas crianças.
No texto de Nelson, há a descrição detalhada da visita de Elias à casa do irmão adotivo, Ismael. Aí revela-se a personalidade má do médico negro que demonstrava tamanha inveja do primo por ele ser branco e, por tal razão, o maltratava fisicamente na infância. Na apresentação da peça, esse trecho foi retirado, o que não prejudicou a compreensão da história, visto que a explicação sobre o relacionamento de Ismael e Elias foi explicado em momentos posteriores do texto e da encenação. Elias é, então, mantido hóspede naquela noite, sob a condição de não sair do quarto de forma alguma. Objetivo: não ver Virgínia.
Na sequencia, ocorre a cena, acompanhada de um musical, em que Virgínia se arruma no quarto. Para a composição dessa cena, foi montado um pequeno cenário com penteadeira e iluminação avermelhada. A peça contou com a participação de uma cantora maestra extremamente afinada que também contribuiu com seu toque de piano. Enquanto Virgínia, sentada ao lado da penteadeira, se maquiava e se arrumava, a canção era exibida. De repente surge Ismael que discute com Virgínia e tenta agarrar a esposa à força. Virgínia suplica para que não tenham relações sexuais, visto que eles deveriam estar em luto por causa da recente morte do terceiro filho deles. Nelson demonstra domínio de linguagem e ideias quando Virgínia afirma que gerar um novo filho naquele momento era como fazer com que o filho morto voltasse ao seu ventre.
Durante a discussão do casal, reforça-se ainda mais a repugnância de Ismael por sua própria cor, ele mantém Virgínia presa em casa e a proíbe de ter qualquer outra imagem a não ser a dele, para que ela não deseje outro homem. A razão é que ele se menospreza por ser preto.
Através das palavras de Virgínia e Ismael e do flashback, os produtores da peça conseguem resgatar o texto de Nelson que narra a história desse casal. Virgínia se relacionou com o noivo de sua prima que, por tal razão, suicidou-se. A mãe da prima traída ordena a Ismael que tome Virgínia à força, e ele o faz. Não tendo mais saída, Virgínia se casa com Ismael.
O passado, assim como as características de cada personagem é desvendado gradativamente ao longo do texto e da encenação. Esse ponto foi bem explorado no espetáculo que sintetizou as cenas cujos assuntos se repetiam. É dessa forma que descobrimos que Ismael é preto, mas é um médico; e que a sociedade da época via o negro como uma espécie de doença terrível.
Virgínia descobre, através da criada, que há outro homem em sua casa, o irmão adotivo de Ismael. Sua curiosidade se aguça ainda mais por saber que ele é branco.  Devido a ordens do patrão, a criada se recusa a permitir que ela o veja, mas Virgínia chantageia a serviçal, o que demonstra sua mesquinhez. Virgínia ao descobrir que Elias é cego fica ainda mais atiçada para conhecê-lo. Ela sobe até o quarto em que ele estava e o seduz.
O papel de Virgínia foi interpretado por duas atrizes. Como se tratava de uma leitura cênica, os produtores foram bastante inteligentes, pois, dessa forma, deram a oportunidade de o elenco mostrar seu brilho e permitiu que os atores descansassem.  As atrizes atuaram muito bem nas cenas que lhes foram designadas. A segunda atriz que interpretou Virgínia foi perfeita para o papel. Ela conseguiu expor, através de suas falas, os efeitos cômicos e coerentes das construções linguísticas de Nelson. Conseguiu nos mostrar a habilidade do escritor em construir uma obra tão bem articulada e inteligente.
Virgínia chega, então, ao quarto de Elias e constata que ele é realmente branco. Fica enfeitiçada ao perceber sua semelhança com o noivo de sua prima pelo qual afirmou ter sido realmente apaixonada. A partir daí, o público sorri veementemente com a comicidade do texto e da encenação. Apesar do caráter cômico, a crítica e a exposição dos crimes dos personagens são notáveis: Virgínia afirma que não haveria pecado algum em se deitar com Elias. Esse pensamento, assim como outros momentos do texto, acabam confundindo o leitor sobre se os personagens seriam realmente maus, pois parece que todos os crimes e pecados (assassinato, adultério) eram cometidos sem que os autores percebessem a gravidade dos mesmo. Os personagens usam o nome de Deus e da religião, mas pecam o tempo todo.
O espetáculo dispõe de criatividade nesse momento da peça. Para retratar a cena em que Virgínia e Elias fazem amor, foi utilizado um pano branco e uma luz incidiu sobre o mesmo, deixando transparecer apenas a sombra dos amantes. Tudo isso acompanhado pela música da cantora maestra que novamente se saiu muito bem.
A tia de Virgínia cuja filha se suicidou, chega à casa, e, ao ver Virgínia saindo do quarto de Elias após longo período, descobre o relacionamento dos dois. A tia fica completamente entusiasmada por encontrar a oportunidade de se vingar da sobrinha. Na encenação, a personagem da tia é a mesma que interpretou a primeira cena de Virgínia no quarto se arrumando.
Quando Ismael chega à casa, Virgínia que antes o repugnava, passa a afirmar que o ama e que não permitirá que outro filho morra, mas implora que ele não fale com a tia. Entretanto, esta interrompe a conversa do casal e conta a verdade. Virgínia, almejando ter um filho de Elias e sabendo da cólera do marido, prefere a morte de Elias ao invés da morte do filho. Assim, ela instiga Ismael e ele mata Elias com um tiro no rosto.
A impunidade parece ser algo também presente naquela sociedade, pois os assassinatos que Virgínia cometera com seus próprios filhos, assim como a morte de Elias parecem soar como algo natural e normal. Ninguém aparece recebendo punição por isso. É revoltante também a atitude de Ismael em não impedir a esposa de cometer os crimes. A crença dessas pessoas era de que se fosse algo contra o negro não haveria pecado, todos os crimes eram justificáveis. Por exemplo, a morte das crianças se devia ao fato de elas serem pretas, precisavam ser eliminadas. O adultério de Virgínia com Elias não tinha problema, porque seu marido era negro e o adultério foi cometido com um branco, Elias. Até para a morte de Elias encontrou-se uma justificativa: se alguém teria que morrer, que fosse ele, ao invés da criança, já que todos os outros filhos de Virgínia eram pretos e ela precisava ter um filho branco. Os personagens parecem apresentar distúrbio de personalidade: ao mesmo tempo que dizem amar, matam e traem.
É importante ressaltar que os trajes dos personagens eram, de modo geral, pretos, tanto os de Virgínia quanto os de Ismael e os da tia. O ator que protagonizou Ismael não era negro, talvez ele tenha usado trajes pretos para melhor representar seu papel. Porém, isso descaracterizou um pouco o texto propriamente dito o qual afirma que Ismael se vestia distintamente, contudo sempre usando roupas brancas. Acredita-se que essa seja outra demonstração da repugnância que Ismael tinha de si: até as roupas precisavam ser brancas para esconder sua cor.
Após a sequencia de tragédias na vida de Ismael, morte do filho, traição da esposa e o assassinato do irmão, há uma cena que não consta no texto, mas que foi inserida na peça, em que Ismael toma banho como se estivesse desejando rançar seu coro, sua pele, atribuindo à sua cor o motivo de todas as suas desgraças. Para a composição dessa cena, houve música e o ambiente foi obscurecido com a emissão de uma luz mais ofuscada. O ator se lavava em uma banheira. Nessa cena, o ator se despe completamente, o que foi desnecessário. A única intenção pareceu ser chocar. Nelson pretendia mostrar as mazelas da sociedade e se fosse para chocar não seria com nudez ou sexo, seria com o racismo. A peça já tinha conquistado o público que não piscava os olhos, a nudez do ator apenas chocou o público.
Na sequencia da história, Virgínia fica grávida de Elias e nasce Ana Maria, uma mulher ao invés de um homem como esperava a mãe. A história continua revelando atrocidades e mais atrocidades. Virgínia parece desejar o filho como a um homem e Ismael desejava Ana Maria como a uma mulher e a tem como tal. Além disso, no final da peça constatamos que Ismael cegara Ana Maria assim como fez com seu irmão Elias. Ele foi capaz de cegá-la quando ela era ainda um bebê, para que ela não visse sua cor e o amasse. Como Virgínia desejava um filho homem e veio uma mulher, ela não impediu Elias de cegar a menina. Ismael decide ir embora com Ana Maria e abandonar Virgínia, porém esta, mesmo sempre tendo odiado o marido, ao ter seu orgulho ferido e se sentir ameaçada pela própria filha, consegue reverter a história, convencendo Ismael de matar a menina, fato que consolida a crueldade do casal.
A atriz que interpreta os três papéis: o de Virgínia, o da tia e também o de Ana Maria relevou grande talento e diversidade, pois conseguiu ser dramática (Virgínia na primeira parte da peça), engraçada e fria (papel da tia) e por fim, infantil (Ana Maria). O vestuário atribuído à atriz também foi coerente com Virgínia (estava sensual e maquiada); como a tia velha (com lenço no cabelo); e como Ana Maria que trajava roupinha clara e singela, além de ter o cabelo trançado em duas partes, como se faz nas crianças.
O nome da peça também nos intriga e poderá ter outras interpretações, mas uma delas pode se referir aos anjinhos negros, ou seja, aos filhos assassinados por Virgínia e por Ismael. Ressalta-se ainda que mesmo se tratando de uma leitura cênica, os atores leram pouco e, mesmo lendo, demonstraram total propriedade das falas.
Percebe-se, dessa forma, que “Anjo Negro” é uma riquíssima obra de Nelson Rodrigues que exibe seu potencial em expor o ser humano não como totalmente bom ou totalmente mau, mas como uma essência confusa. O espetáculo foi capaz também de materializar os diálogos bem construídos por Nelson e revelar o talento dos atores e de toda a produção.

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